sábado, 22 de abril de 2017

'Vício' em Uber causa até cartão cancelado

Passageiros trocam transporte público e caminhada por aplicativos de carro e acabam gastando até R$ 900 mensais
Os R$ 8 parecem pouca coisa, os próximos R$ 15 também e por que não uma corrida de R$ 20? É só dessa vez, tá barato. Com essa mentalidade, usuários se "viciaram" em recorrer a aplicativos de transporte todos os dias como se não houvesse fatura amanhã. No entanto, ela chega, e revelando somas inimagináveis. A preguiça, os preços baixos e o tempo economizado fizeram com que usuários criassem uma dependência de aplicativos de transporte como Uber, 99, Easy e Cabify. Quem pegava metrô e ônibus ou ia a pé para os lugares passou a recorrer a motoristas, desembolsando um valor mensal que antes não estava contabilizado no planejamento financeiro.
(...) "Já cheguei a gastar R$ 200, R$ 300", afirma a estudante Anna Carolina Xandó, 21, cuja fatura do cartão se divide entre Uber, Uber, Uber e comida, comida, comida, e mais Uber, Uber...
(...) Já os gastos da estudante Carolina Arno, 20, são maiores. Ela diz desembolsar R$ 900 por mês com Uber. Segundo ela, mesmo assim fica mais barato do que usar o carro para ir a baladas e se deslocar de casa, no Itaim Bibi, para a faculdade, na Vila Mariana (zona sul) – só o estacionamento custa R$ 350 mensais.
(...) O consultor em engenharia de tráfego Sérgio Ejzenberg alerta, no entanto: a exacerbação do uso do automóvel é nociva para a sociedade. "Gera mais poluição e congestionamento. Para as viagens usuais, de casa para o trabalho, por exemplo, o transporte público, o mais seguro e barato que existe, deve ser priorizado pelo usuário", diz.
Por causa de gastos mais exorbitantes com esses aplicativos, tem até quem tenha se submetido a um "detox" deles para colocar a fatura do cartão de crédito nos eixos.
"Lembrei que existia o conhecido ônibus", brinca a vendedora Virgínia Cardoso, 18, moradora de Fortaleza (CE). "Antes gastava R$ 250 por mês. Agora não chega a R$ 100. Sou mais controlada no vício." Para tanto, recorreu a uma técnica comum para administrar as contas: passou a pagar com dinheiro.
(...) Para o professor de finanças do Insper Michael Viriato, "parece quase indolor" o gasto de dinheiro nesses aplicativos porque não se vê o dinheiro na hora da compra, nem é necessário passar o cartão. "A mesma pessoa que se descontrola no cartão de crédito em compras normais é quem pode se descontrolar na compra desse serviço."
Foi o que aconteceu com a fotógrafa Lua Morales, 24. "Eu pensava: nossa, que preguiça de ir para a padaria. Vou de Uber", diz. "Pior que eu era extremamente controlada com cartão de crédito. Foi o Uber que me causou isso. Eram viagens pequenas e teoricamente baratas. Mas se somar no fim do mês... De R$ 8 em R$ 8 vira R$ 1.000", diz. Lua gastou R$ 800 num mês com o Uber, ficou devendo, e teve o cartão cancelado.
Estes são alguns trechos de uma reportagem de Juliana Gragnani, publicada na edição de 3 de abril de 2017 do jornal Folha de S.Paulo.
"'Lembrei que existia o conhecido ônibus', brinca a vendedora Virgínia Cardoso, 18, moradora de Fortaleza (CE). 'Antes gastava R$ 250 por mês. Agora não chega a R$ 100. Sou mais controlada no vício'. Para tanto, recorreu a uma técnica comum para administrar as contas: passou a pagar com dinheiro."
Colocando em prática o método das recordações sucessivas, a lembrança da vendedora levou-me a lembrar de duas passagens que reproduzo a seguir. A primeira, extraída de uma entrevista com o filósofo australiano John Armstrong publicada na extinta revista Lola, em uma data que não sei lhes dizer qual seja, pois as páginas da revista não a estampam em seu rodapé.
Lola: Hoje, a maioria das transações é virtual. Isso muda a noção das pessoas em relação ao dinheiro e a maneira com que lidam com ele?
John Armstrong: Sim. Quando temos de pagar em dinheiro – em notas reais -, ficamos muito mais conscientes do que estamos gastando. Transações virtuais diminuem a dor dos gastos, o que provavelmente é uma coisa ruim, embora seja totalmente compreensível que queiramos diminuir essa dor. A dor é, biologicamente falando, um sinal de alerta sobre o perigo. Então, se você elimina a dor, você elimina o sinal de alerta.
A segunda, extraída de uma reportagem intitulada Pagar restaurante com dinheiro pode já não ser mais uma opção, publicada na edição de 31 de julho de 2016 do jornal Folha de S.Paulo, com a indicação de ter sido publicada no The New York Times.
"Cartões e aplicativos de pagamento também são sujeitos a falhas de segurança, o que pode expor dados de clientes. Outra vantagem da cédula é que, de acordo com estudos, pagar em dinheiro ajuda o consumidor a gastar menos, ao dar mais valor ao que compra."
"Uma rede de restaurantes 'deixa de aceitar dinheiro vivo para pagar a conta' e, segundo um de seus fundadores, "quase ninguém reclamou nas redes sociais", diz a reportagem."
Considero sinistra a inconsciência com que a maioria da dita espécie inteligente do universo (sem qualquer reflexão quanto a possíveis efeitos nocivos) adere a toda e qualquer novidade que lhe sendo vendida como uma facilidade, a médio e longo prazo, lhe trará males dos quais ela terá imensas dificuldades para se livrar. Ou seja, como diz aquela belíssima canção da Legião Urbana: "Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação".

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