quarta-feira, 5 de abril de 2017

Smartphone não entra

A dependência do uso de celulares faz com que empresas proíbam o acesso de aparelhos à sala de reuniões para tornar os encontros mais rápidos e produtivos
Após a gafe histórica durante a cerimônia do Oscar deste ano, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas anunciou na quinta-feira que celulares não serão mais permitidos nos bastidores da premiação. Para quem não lembra, um auditor usava seu smartphone para postar em uma rede social, distraiu-se e entregou o envelope errado ao apresentador. O desfecho é conhecido: o prêmio foi anunciado para "La la land", enquanto o verdadeiro vencedor era "Moonlight: Sob a luz do luar".
No mundo corporativo, distrações geradas pelo uso excessivo da tecnologia não têm a mesma repercussão de um "mico" mundial. Causam, no entanto, grandes impactos na condução dos negócios. Não à toa, algumas empresas estão proibindo o uso dos smartphones durante reuniões para tornar os encontros mais rápidos e produtivos. A caixa de acrílico na entrada da sala de reuniões na agência VZA Expomídia deixa claro: "celulares não são permitidos aqui". A ideia foi de Leo Martinez, um dos sócios e diretor de criação, que começou a se incomodar com a dependência da tecnologia e se interessou em estudar para verificar como estes estímulos eram prejudiciais às vidas pessoal e profissional.
Na procura, ele encontrou resultados alarmantes. Pesquisas feitas em Harvard e no MIT (Massachusetts Institute of Technology) mostram que um americano checa seu celular a cada seis minutos e meio. Além disso, a presença de um telefone na mesa (mesmo que esteja desligado) muda o que as pessoas falam. A expectativa por uma notificação de um aplicativo faz com que o assunto não fique profundo, e apenas permaneça na camada superficial. Neurocientistas também concluíram que a culpa por esta ansiedade é hormonal: a dopamina, hormônio da gratificação, gera uma sensação de prazer depois que damos aquela olhadinha rápida no smartphone. E o cérebro "dá like" a cada notificação recebida.
- Comecei a analisar as reuniões das quais participava e vi que a atenção não estava ali. Eu mesmo saía para atender o celular. Somos uma agência de soluções, vendemos conceitos, coisas abstratas, e precisamos que o time esteja 100% focado. Sem o celular, a reunião fica mais produtiva e dura menos tempo – defende Leo Martinez, que criou a caixa de acrílico citada no segundo parágrafo acima.
Na Rádio Ibiza, há uma regra tácita de que os aparelhos não são bem-vindos nos encontros de equipe. (...) É importante que todos estejam presentes de corpo e alma para que as reuniões sejam proativas e produtivas – confirma Lauro Almeida, gerente de criação da empresa.
E se você acha que o assunto é balela, e está lendo esta matéria e olhando o celular ao mesmo tempo, um alerta: ser "multitarefa" e "conseguir fazer duas coisas ao mesmo tempo" é algo impossível para o cérebro, diz Ana Souza, especialista em neurociência comportamental e co-CEO da Forebrain.
- O processo de atenção é como se fosse uma lanterna: botamos foco no que é relevante. Ninguém é bom em fazer várias atividades ao mesmo tempo. Numa reunião, usando o celular, o entendimento é menor e a participação fica precária. Cada vez que o participante abre um aplicativo e volta a prestar atenção, demora a se engajar novamente no assunto. E o deslocamento da atenção causa perda da produtividade – afirma ela.
(...) Para a psicóloga, neuropsicóloga e fundadora da escola "Os Batutinhas", Ana Luiza Badaró, as pessoas vivem numa ansiedade e velocidade em que não se permitem um momento sequer de vazio. (...) Esta ansiedade de ter as respostas na hora por causa do celular na mão gera ansiedade e faz com que a gente perca o tempo de reflexão – diz ela.
Estes são alguns trechos de uma reportagem de Ana Carolina Diniz, publicada na edição de 2 de abril de 2017 do jornal O Globo.
"Ser 'multitarefa' e 'conseguir fazer duas coisas ao mesmo tempo' é algo impossível para o cérebro.", diz Ana Souza, especialista em neurociência comportamental e co-CEO da Forebrain. "O processo de atenção é como se fosse uma lanterna: botamos foco no que é relevante. Ninguém é bom em fazer várias atividades ao mesmo tempo.", acrescenta ela.
Inicialmente, Ana Souza diz que "Ser 'multitarefa' e 'conseguir fazer duas coisas ao mesmo tempo' é algo impossível para o cérebro". Posteriormente, diz que "Ninguém é bom em fazer várias atividades ao mesmo tempo". Fico com a segunda afirmação, pois, da primeira, eu discordo. Afinal, o que mais se vê, durante o tempo todo, são pessoas fazendo duas coisas ao mesmo tempo. E uma vez que alguém tenha conseguido fazer determinada coisa, creio que considerar impossível fazê-la deixa de fazer sentido. No meu entender, o que deve ser considerado impossível – ainda segundo o que se vê durante o tempo todo - é fazer alguma coisa "bem feita" sem dedicar-se exclusivamente a uma coisa.
Ainda sobre o assunto 'multitarefa', compartilho com vocês algo interessantíssimo que li no livro Sociedade do cansaço (2015, Editora Vozes) de autoria de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano radicado na Alemanha onde é professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim e autor de uma dezena de artigos sobre a sociedade e o ser humano.
"A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não representa nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem.
Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua a comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu (sua) parceiro (a). Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si. Não apenas a multitarefa, mas também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla, mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. As mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura de atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem."
Smartphone não entra, eis o título desta reportagem em que é dito já haver empresas cujos donos conseguiram deixar entrar em sua cabeça o entendimento que "ser 'multitarefa' e 'conseguir fazer duas coisas ao mesmo tempo'" é algo contraproducente. Sociedade do cansaço, eis o título de um livro em que é dito que, ao contrário da suposição de ser algum progresso civilizatório, a 'multitarefa' é um retrocesso, pois, "trata-se uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem".
A reportagem e o livro citados no parágrafo anterior são apenas dois exemplos de reportagens e livros onde vi evidenciada a nocividade da 'multitarefa'. Sendo assim, a esperança é que, com o transcorrer do tempo, mais e mais pessoas consigam enxergar tal nocividade e que algum dia a dita espécie inteligente do universo consiga, finalmente, atingir um estágio evolutivo no qual (por mais absurdo que – hoje – isso possa parecer) a prática da 'multitarefa' tenha sido erradicada. Afinal, como diz Byung-Chul Han, 'multitarefa' é uma técnica de atenção indispensável para sobreviver na vida selvagem.

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