sábado, 12 de março de 2016

Compartilhando asneiras

A quatro mil quilômetros do Vale do Silício, a cena contradiz os slogans da era digital. No estacionamento do aeroporto nova-iorquino LaGuardia, há um protesto de trabalhadores, na tradição do movimento sindical analógico. Protesto contra quem? Uber. Ué, na "disrupção" da "economia compartilhada" os trabalhadores não são patrões de si mesmos?
O nascimento do pequeno movimento sindical no aeroporto foi relatado na revista New Yorker. No dia 2 de fevereiro, 50 motoristas do Uber saíram do aplicativo da empresa e fizeram uma greve, na área do estacionamento onde costumam esperar as chamadas para o LaGuardia. O Uber havia anunciado, no dia 29 de janeiro, a redução do preço das corridas em Nova York e várias cidades dos Estados Unidos e do Canadá para pressionar as concorrências locais. Não era a primeira vez que a empresa fundada pelo obnóxio Travis Kalanick reduzia preços e também já havia aumentado a fatia que abocanha dos motoristas.
Mas, quando uma empresa existe sobretudo na nuvem digital e não há jornada formal de trabalho e folga, tentativas de organizar grupos de trabalhadores enfrentam novos desafios. Espremidos nos seus ganhos mais uma vez, muitos disseram que não era mais possível se sustentar com os novos preços e reações de protesto começaram a pipocar na rede social, em parte graças a um grupo criado, ó ironia, no WhatsApp de Mark Zuckerberg, pelo pessoal que protestou no Laguardia.
A reportagem da New Yorker mostra como a massa de motoristas do Uber - só em Nova York, estima-se que há 30 mil registrados no aplicativo – está na mira de grupos sindicais em todo país. Em dezembro, a câmara de vereadores de Seattle aprovou por unanimidade a autorização para motoristas do Uber e do concorrente Lyft se sindicalizarem. Há uma ação de classe em curso na Califórnia exigindo que os motoristas sejam classificados como empregados e não autônomos.
Aqui, uma pausa para deixar claro que deploro as reações de taxistas que intimidam e até espancam os motoristas do Uber no Brasil. E também para admitir que capitulei e aderi ao aplicativo em janeiro, diante da péssima qualidade do serviço de táxis no Rio. Quando falo de qualidade, não reclamo de carros sujos ou velhos. Falo de incidentes como saltar do táxi com um bebê antes de chegar ao destino por causa do aparente impulso suicida do motorista. Ou pedir para saltar porque outro assistia futebol enquanto dirigia em alta velocidade. Ou ser despejada com bagagem no meio do tráfego porque o motorista tinha esquecido de abastecer o carro. É inacreditável uma cidade tão dependente de turismo e prestes a sediar uma Olimpíada não considerar prioridade educar e também reprimir profissionais que obtêm concessão para operar um transporte público.
De volta ao estacionamento do LaGuardia. As palavras de ordem nos pôsteres do protesto faziam o que a mídia especializada em tecnologia não costuma fazer: desmontar a balela de que existe economia compartilhada. Para começo de conversa, as empresas desta economia são predominantemente controladas por um punhado de empreendedores do Vale do Silício. Não há bens sendo compartilhados. Há, sim, trabalho sendo alugado, como no aplicativo TaskRabbit, em que autônomos competem para fazer biscates. De fato, boa parte dessas empresas não passa de intermediários que cobram pelo aluguel do trabalho alheio. E quem disse isto foi o insuspeito e pró-business Financial Times, num artigo sob o título A Economia Compartilhada Medieval Para Você.
Chamar de "parceiros-motoristas" seu exército de autônomos que incorporem em todas as despesas para trabalhar sem a menor perspectiva de estabilidade, além de ofuscar a natureza da relação de trabalho, há de despertar a reação previsível, a defesa da volta a um rígido modelo de sindicalismo do século 20.
Não há tecnologia que transforme a cultura de piedades corporativas.
Conforme prometido na postagem anterior, eis a íntegra da coluna quinzenal de Lúcia Guimarães publicada na edição de 15 de fevereiro de 2016 do jornal O Estado de S. Paulo.
"As palavras de ordem nos pôsteres do protesto faziam o que a mídia especializada em tecnologia não costuma fazer: desmontar a balela de que existe economia compartilhada.". (...) Protesto contra quem? Uber. Ué, na "disrupção" da "economia compartilhada" os trabalhadores não são patrões de si mesmos?
"Desmontar a balela de que existe economia compartilhada é o que faziam as palavras de ordem nos pôsteres do protesto.", segundo Lúcia Guimarães. A balela que nos é impingida por meios de comunicação a serviço dos que se consideram os donos do mundo. A balela que nós, na condição de seres integrantes de uma civilização onde reinam a falta de atenção, a superficialidade e, consequentemente, a predisposição para crer em inúmeras espécies de asneiras, aceitamos com extrema facilidade.
"Quando uma tarefa não pode ser feita por computadores, ela é confiada a um exército de reservistas que recebe uns trocados. Não haveria melhor introdução à 'economia de compartilhamento', assim chamada porque o trabalhador utiliza seu próprio carro, sua própria moradia e seu próprio computador, para benefício do empregador."
O parágrafo acima foi extraído da edição de março de 2016 do Le Monde Diplomatique Brasil, em uma matéria jornalística intitulada Democratas deslumbrados com o Vale do Silício e onde é atribuído a Evgeny Morozov (o entrevistado na reportagem apresentada na postagem anterior, lembram?). O parágrafo abaixo foi obtido na mesma matéria citada neste.
"(...) O sucesso da fórmula está na facilidade com que qualquer um pode registrar-se junto a uma empresa supostamente 'de compartilhamento' e tornar-se agradecidamente explorado, como um temporário, enquanto um simples software garante sua relação com o cliente e o empregador. (...) No caso do Uber, os custos e riscos associados à atividade – obrigação de contratar seguro, possuir um veículo, considerar a possibilidade de licença por doença e a perspectiva de aposentadoria etc. – ficam todos a cargo do trabalhador, enquanto o 'inovador' californiano que concebeu o software fica com a parte do leão dos ganhos assim gerados. É o 'cada um por si' erigido à categoria de estratégia nacional de emprego.".
Enxergo, a partir do que é dito no parágrafo acima, a consagração, pela tecnologia, da nefasta figura do atravessador, aquele que intrometendo-se entre quem presta um serviço e quem o recebe, sem nada produzir e nenhum risco correr, fica com a parte do leão dos ganhos gerados pela prestação do serviço, deixando para o prestador apenas algum resíduo.
Interessante é que após a postagem anterior (em 29 de fevereiro), quando lhes prometi o artigo de Lúcia Guimarães, já tive oportunidade de ler mais duas matérias jornalísticas focalizando a "economia compartilhada". A primeira foi a do Le Monde Diplomatique Brasil já citada acima. A segunda é uma reportagem de Filipe Oliveira publicada na edição de 5 de março de 2016 do jornal Folha de S.Paulo da qual compilei o parágrafo abaixo
"Livro questiona as promessas da economia compartilhada. Autor diz que start-ups como Uber intensificam precarização do trabalho. (...) O jornalista Steven Hill, radicado em San Francisco (EUA), de onde vem essa revolução, vê outro cenário: as pessoas colaboram com seu patrimônio e trabalho, e corporações e investidores ficam com bilhões de dólares. A crítica é apresentada em seu livro 'Raw Deal' (Injustiça)'."
Antes que eu leia novas reportagens, encerro por aqui esta postagem deixando-lhes algumas indagações.
Ficou mais claro para vocês o que é essa coisa denominada economia compartilhada? Faz sentido considerar uma balela (usando uma palavra de Lúcia Guimarães) a existência de tal economia? Será que, em uma civilização (sic) composta em sua maioria por indivíduos deficientes em termos de capacidade de saber interpretar o que ocorre ao seu redor, uma das coisas que nela encontra condições mais propícias para o seu desenvolvimento é exatamente aquilo que dá título ao artigo de Lúcia Guimarães: o compartilhamento de asneiras? O que vocês acham?

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