segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

'Se pagar, samba vai até falar de papel higiênico'

Espremido em um corredor atrás do palco ("meu camarim está um gelo", explica), o sambista Neguinho da Beija-Flor esperava a hora do desfile da escola Acadêmicos do Tatuapé, que homenageava a agremiação carioca Beija-Flor de Nilópolis.
Folha – A cantora Beth Carvalho diz que, dependentes de patrocinadores, as escolas hoje fazem enredo até sobre iogurte. Você concorda?
Neguinho da Beija-Flor – As coisas mudaram bastante. Não se faz mais samba-enredo como antigamente. Hoje tem samba de escritório, de condomínio. Vários compositores compõem para diversas escolas. Antigamente era só a ala dos componentes de cada escola que fazia [o enredo]. O samba-enredo perdeu qualidade, sim. A Beth tem razão!
Mas patrocínio é necessário.
Infelizmente hoje, devido ao crescimento do Carnaval, é. Aí, o que pintar é lucro. Já pensou quando a marca de papel higiênico vier com patrocínio de R$ 20 milhões? A escola vai ter que falar de papel higiênico!
Como você lida com isso?
Eu não sou mais compositor de samba-enredo por coisas assim. Hoje, pra você ganhar com um samba-enredo, tem de ter mais de cinco, seis parceiros. Eu ganhei quatro sozinhos na Beija-Flor. Agora eu parei!
O samba virou negócio?
Sem dúvida! Os sambas antigos emplacavam. Os de hoje são passageiros, no ano seguinte ninguém lembra mais. Não tem mais a mesma graça pra mim. Hoje sou apenas interprete.
Esta é a íntegra de uma reportagem-entrevista de Mônica Bergamo publicada na edição de 7 de fevereiro de 2016 do jornal Folha de S.Paulo.
Muito mais do que o título de um antigo programa televisivo, "Topa tudo por dinheiro" é o lema de vida adotado, consciente ou inconscientemente, pela enorme maioria dos integrantes da dita espécie inteligente do universo.
"Na realidade, o dinheiro é um grande tóxico da atualidade, vicia sem que as pessoas se apercebam, justifica-se pela criação de riqueza material, solapa as riquezas intangíveis, sejam intelectuais ou emocionais".
As palavras acima são de Luiz Roberto Londres, poeta, filósofo e acima de tudo médico. Médico autor de alguns livros dentre eles Sintomas de uma Época: Quando o Ser Humano Se Torna um Objeto. Sugestivo, não? Médico autor de artigos publicados em jornais e revistas dentre eles aquele do qual extraí as palavras acima. Artigo publicado na edição de 26 de maio de 2003 do Jornal do Brasil com o título 'Time is life'. Artigo no qual, interpretando o aforismo - "time is money" -, criado por Benjamin Franklin em 1748, quando Franklin tinha 42 anos, Luiz Roberto conclui que, para o autor da frase "time is money", a verdade vivida foi outra: "time is life". Para quem quiser ler o referido artigo, aviso que está previsto para o próximo mês de março o seu espalhamento pelo blog espalhandoideias.blogspot.com.
A pergunta inicial da entrevista é sobre a concordância ou não, de um famoso compositor de samba-enredo, sobre a opinião de uma famosa cantora e sambista que condena a dependência que as escolas de samba passaram a ter da existência de quem as patrocine. E diante da concordância do entrevistado, o que diz a entrevistadora? Diz "Que o patrocínio é necessário". E aí, é a vez do entrevistado concordar com a afirmação da entrevistadora.
Triste civilização (sic) essa em que sobrevivemos, não? Civilização onde se concorda que coisas nocivas sejam necessárias! Onde a perda de qualidade é aceita de forma resignada. "O samba-enredo perdeu qualidade, sim", concorda o compositor, ou pior, o ex-compositor, como ele mesmo afirma ao responder a pergunta: "O samba virou negócio?". "Sem dúvida! (...) Hoje sou apenas intérprete".
Hoje ele é apenas intérprete, pois o que fazia, digamos, com alma, hoje virou negócio, em um mundo onde tudo virou negócio. Intérprete para representar as vontades e os interesses de quem lhe paga. Afinal, como diz uma conhecida frase também transformada em lema de vida por uma imensa maioria, "Pagando bem, que mal tem?". Frase onde a finalidade do "bem" é simplesmente rimar com o "tem", pois, na verdade, cada vez mais a maioria das pessoas vende-se por cada vez menos. E neste mundo onde tudo virou negócio, um imenso contingente de intérpretes segue resignadamente pela vida a mercê de patrocinadores e / ou investidores.
Triste civilização onde, em última análise, a própria (ou seria imprópria) sobrevivência de pessoas, de instituições, e até mesmo de países, passou a depender da existência de patrocinadores e / ou investidores. Vocês conseguem sentir-se bem ouvindo repórteres afirmarem que nas condições em que o vosso (sic) país se encontra os investidores não têm interesse em investir nele. Eu, não. Não, eu jamais aceitarei que a preservação da vida de pessoas, de instituições que visem o bem, e até mesmo de países seja algo dependente da existência de investidores.
Que raio de mundo é esse em que o bem estar da população de qualquer região seja dependente do interesse de alguém nela investir? Será que em momento algum o imenso contingente de prejudicados perceberá a nocividade da existência de investidores e revoltar-se-á contra eles? Será que na hora em que for proposto pagar para o samba falar de papel higiênico, será o momento em que dará merda? O momento em que, finalmente, ocorrerá a revolta contra a nocividade da existência de patrocinadores e / ou investidores?
E prosseguindo com os "será?" eu recorro àquela linda música da Legião Urbana. "Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?" Vencer a nossa dependência daquele que, segundo o entender de Luiz Roberto Londres, é um grande tóxico da atualidade: o dinheiro. Vencer a nossa adesão àquele lema adotado pela maioria da dita espécie inteligente do universo. O deplorável lema "Topa tudo por dinheiro". Vencer a nossa lamentável resignação em prosseguir pela vida atuando como intérpretes de enredos feitos por patrocinadores, em vez nos dispormos a escrever o nosso próprio enredo.
E para encerrar esta já longa postagem seguem duas frases de James Baldwin (1924 – 1987), escritor e ativista americano que, no meu entender, têm tudo a ver com a última frase do parágrafo anterior.
"Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado, mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado."
"Somos responsáveis pelo mundo no qual nos encontramos, pelo simples fato de que somos a única força consciente capaz de transformá-lo."

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